O MAR COMO EXEMPLO
06/08/2019
Santiago
desconhecia a vida num grande centro urbano. Fechado àquele mundo rural,
cercado por mata de inatingível tamanho, o horizonte moldado por imensas
montanhas verdes. O caminho disponível apenas à pé e raramente cavalo. Poderia
parecer incredulidade que ainda existisse mundo livre da selvageria das grandes
cidades, de corruptos, de corruptores, de vaza jato, de tanta bestialidade e fake news. Esse mundo existia sim e ali
vivia a família de agricultores, numa vida legítima, respeitosa com a natureza,
valorizando a agroecologia como algo natural, o respeito ao que a grande mãe
terra dispõe. Por lá nem mesmo chegara luz elétrica.
A professora local apresentou aos
alunos a disponibilidade de bolsa de estudo para quem escrevesse sobre o mar. A
bolsa daria direito ao estudo acadêmico englobando passagem, material e estadia
numa universidade social e tal proposta era para os que viviam no interior, uma
oportunidade de desenvolvimento da capacidade de gestão na vida do campo. A
professora reconhecia, vocês alcançaram condição nas diversas matérias ligadas
ao curso de segundo grau, esse não é o problema. Ela soube trabalhar seu método
de ensino e encontrou pessoas com ânsia de conhecimento. A professora passou à
pergunta:
― Sabemos que a tecnologia está
presente no mundo contemporâneo, apesar de ainda estarmos distante de acesso. Alguém
conhece o mar? ― Ninguém levantou a mão. ― Escrevam sobre isso, temos tempo.
A classe efervescia. Jovens falando
ao mesmo tempo. Santiago, ao invés de expressar-se na confusão, passou à
proposta feita pela professora.
Santiago lembrou-se do Velho e o mar
de Hemingway. E a história se tornando vívida em seus pensamentos. O vento que soprava
às vezes ao norte outras ao sul na distante ilha. O velho, o menino, ambos, adoravam
o mar, o respeitavam, era de onde tiravam a sobrevivência. Reconheciam a
potência das águas e habilidade necessária para guiar o remo do barco aos
ventos favoráveis. Eram pescadores, o velho de olhos da cor do mar, alegres e
indomáveis, tinha a experiência e ligeireza no domínio da embarcação em alto
mar. O menino franzino e esperto aos ensinamentos do velho tinha o olhar para o
futuro, mas o que mais gostava era da companhia daquele velho diferente de
outros pescadores, que sabia respeitar o mar dócil ou voraz, e o menino queria
ser bom pescador. Foi através da história do sonho com a África, e o mar visto
pelo garoto do sonho, com extensas praias douradas e areias branquinhas que feriam
os olhos e que de longe avistava montanhas diferentes da dele, montanhas
castanhas, que Santiago imaginou a beleza e a imensidão daquelas águas, tão
diferentes dos rios e cachoeiras de sua terra. O velho vivia em outro lugar
agora, mas nos sonhos escutava o marulhar das ondas, os barcos singrando as
águas, e Santiago sentiu o mesmo aroma que o velho enquanto sonhava. O aroma da
África soprada pela brisa. Há tempos somente sonhava com os leões na praia,
brincando como gatinhos. E quando acordava, o velho tinha a companhia do menino
durante o café. O velho ia pescar sozinho no barco, estava sem sorte, voltava
muitos dias sem peixe. O pai do menino não quis o filho vivendo a má sorte do
velho, mesmo assim no fim do dia, o menino esperava a volta do velho amigo. Enquanto
o velho velejava ia pensando nas tão delicadas aves que precisavam se alimentar
e na vida dura que tinham, até mais dura que a dos homens. E o velho falava
consigo próprio, às vezes o mar se torna tão bravio e violento, mesmo sendo o
mar tão belo e generoso, podia se transformar rapidamente e as frágeis aves
sofriam os reveses. Também pensava o mar como la mar, em espanhol mar é feminino, e alguns lhe davam nomes
durante o trajeto. Tinham aqueles que preferiam o nome el mar, pois viam o mar como adversário ou inimigo. Mas o velho, o velho
sempre via o mar como feminino, ou como coisa que concedesse ou negasse grandes
favores, e filosofava, “a lua afeta o mar tal como afeta as mulheres”. Toda aventura
do velho na imensidão do mar, os reflexos que o sol produzia na água e ele prestando
atenção quando se tornava alto e as nuvens acima. O velho gostava das
tartarugas verdes e amigáveis e lembrava-se daquelas que adormeciam na
superfície e amanheciam sem pés, comidos pelos peixes. Muitos pescadores não
tinham pena delas, mesmo sabendo que o coração das tartarugas continuavam a
palpitar muitas horas depois de mortas, e o velho pensava, tenho um coração
assim, e mãos e pés. Quando observava andorinhas voando e circulando um trecho,
reconhecia, ali tem peixe e singrava para lá. O mar azul se perdendo no
horizonte e o velho reconhecia o quanto estava só, olhava a água profunda, a
linha à frente do barco, a ondulação calma do mar, e lembrava do medo que
muitos pescadores tinham de se afastar da costa. Lembrou-se do ciclone que
avisava muitos dias antes, era somente ler os sinais
no céu. Sabia as tempestades que viriam, e quando não havia sinal de tempestade
ou ciclone. O mar e aquele enorme peixe que o velho sabiamente pescou e que
continuou a lutar por sua liberdade naquelas águas oceânicas. O mar salgado que
salgava o peixe. O velho exausto de lutar com o peixe, começava a sonhar com as
imensas praias amarelas com tantos leões e seu olhar sobre a proa do barco, avistando
a brisa da noite, com o imenso peixe ainda puxando, ainda arrastando o barco. O
mar às vezes se agitava. O velho precisava defender-se, o peixe arisco lutava,
e o mar com mais de milha de profundidade. O peixe saltava da água e depois
flutuava ao sabor das ondas. O velho firme, apesar da fraqueza das mãos a
sangue vivo e as pernas cedendo à fome, não deixava de lutar, sabia que uma
hora o peixe se cansaria e nesse momento lhe lançou o arpão até o coração. O
peixe enorme que levaria até a praia da ilha. Mas o sangue jorrando
no grande mar atiçou a voracidade dos tubarões, e não deram sossego ao velho
pescador, que chegou em terra apenas com a carcaça do peixe ao lado de uma das
proas do barco. O menino encontrou o velho exausto e ambos descobriram que o
velho vencera o peixe, o problema foi depois do peixe. O velho e o menino
decidiram que da próxima vez pescariam juntos.
A professora informou que o tempo se esgotara. Santiago entregou o trabalho à professora, consciente que ele, tal como o velho e o menino, tinha sonhos e os sonhos dão esperança àqueles que lutam.
A professora informou que o tempo se esgotara. Santiago entregou o trabalho à professora, consciente que ele, tal como o velho e o menino, tinha sonhos e os sonhos dão esperança àqueles que lutam.
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