Aposentada ativa
Inspiração literária do cotidiano
quarta-feira, 7 de maio de 2025
sempre é possível mentir (CENA 54)
terça-feira, 5 de novembro de 2024
a perda em ciclos (CENA 53)
Os dias se passavam sem leveza e serenidade em Bia. Que fazer? Por onde começar? ou será recomeçar? Para além de meras questões, o substrato profundo dizia respeito à morte, à perda do companheiro, afinal Josué o fora em longa jornada, mesmo que nos últimos anos já não sentisse a proximidade de antes e a cumplicidade de casal se evaporara. De qualquer forma, era momento de luto familiar, o elo ficaria para sempre.
Dizia respeito também às mortes pelo coronavírus que naquele agosto de 2021 ainda fazia estragos traumáticos pelo Brasil. Mais de vinte e quatro mil óbitos somente em agosto.
Apenas um mês após morte de Josué. Ainda é cedo dimensionar as fases dessa perda. Bia sentia raiva, revolta pela vagareza nas atitudes governamentais que surgiam apenas sob pressão de instituições. As queixas de muitos familiares que perderam seus entes, da impotência individual e ainda o distanciamento entre as pessoas, necessário para conter a expansão do coronavírus.
A covid, tragédia social e no Brasil o negacionismo atrasava a busca rápida de solução, com gente no comando de ações sem capacitação para gerir e tomar decisões responsáveis.
Toninho, seu filho, entrou em casa e observou a mãe em sua tristeza e ainda sem ânimo para adiante. Tempo, tempo, tempo...
sexta-feira, 2 de junho de 2023
jangada não foi pro mar (CENA 52)
Era julho de 2021 e naquele local a tristeza caminhava nos rostos dos poucos presentes. Os velórios proibidos. Apenas os mais próximos e alguns poucos da família. Bia consternada, frágil, pálida, se debruçava sobre o caixote, Josué parecia sorrir. Ela parecia nem ligar mais pro vírus, estando sem máscara, chorando o pai de seu filho, o companheiro por 35 anos. Um casamento que vinha se esgaçando no cotidiano das coisas, dos problemas familiares, juntando-se aos do país desgovernado e ambicionado pelas elites que lambiam suas línguas demoníacas, se preocupando com o tilintar do mercado. Quem quer saber de povo? governo neoliberal nenhum quer se interessar por tão pouco, tão povo. As lágrimas se esgotavam enquanto ela se lamentava por esse momento que pensava não passaria.
Passou por tanta gente, na família de Dorinha, uma vizinha mais distante do povoado, quantos de seus familiares vieram a óbito. Agora a família de Bia e Toninho veneravam os últimos instantes próximos a Josué. O responsável por aquela família descansava alheio às dores de parentes e amigos pescadores. Josué pereceu, mas lutou enquanto pode contra os sintomas do corona, até que já na UTI sentiu perder a força pulmonar e desistiu de insistir.
Nos últimos seis meses, Bia e Josué andavam distanciados. Ele decidira passar um tempo fora de casa para refletir sobre aquele casamento que se perdeu na estrada da rotina. Nem retornara ao lar. Agora, Bia fora conduzida pelo corredor do hospital apinhado de gente que também lutava por viver e às vezes, solitariamente, para evitar o contágio de familiares. Coitados e solitários, tantos. Tantos tão sofridos e sozinhos, sem nenhum aparato e trato público. Bia se recordava do caso contado pelo marido um ano antes, aquele sonho pandemônio, pesadelo de pássaros desesperados e desfalecendo. Agora ele, o pássaro alvejado em tiro certeiro num dos celeiros desse país.
Bia estava em luto. Toninho e a namorada esperavam lá fora.
quarta-feira, 29 de junho de 2022
o tempo não para (CENA 51)
20/06/2022
Temporariamente Dodô e
Osvaldo se deixaram levar por aquele mar de lembranças que com a pandemia
parecia quebrar com força na areia, era premente lembrar, como se restaurasse a
saúde mental que andava aos cangalhos pelas más notícias de um país que se
perdeu na irresponsabilidade. A cada dia más notícias, mau direcionamento, os
estribilhos retornavam com a lenga-lenga do poder em nada resolver quando se
tratava em atender às necessidades da maioria da população. Mas no mar do Sul
com frequência o Jetski e o presidente montado, entre outros brinquedinhos
usados com o dinheiro público.
Tendo chegado a mais de
quinhentas mil mortes em junho de 2021 com coronavírus e vão aumentar pela
lerdeza desse poder público de mão incompetente. Eles conversavam e a cada
pontuação, Dodô e Osvaldo traziam a ira à face, como é possível tudo estar tão
mal e a mídia tradicional concordante e até mesmo incentivando o massacre e
destruição do país, é de dar muito nojo, diziam.
― Tá na hora da gente dormir,
Valdo, o cansaço bateu com força.
― As horas voam, nem dei
por mim, a gente encarna nesses assuntos tão obcecadamente, almejando o fim. E sonhando
outubro. Essa ânsia louca de ver a normalidade de volta nos dá esperança e
força pra lutar. Vai na frente, Dodô, vou limpar a mesinha e levar os
vasilhames.
― Cruz credo, Valdo,
deixa eu te ajudar, eta homem que não sabe pedir, credo.
― Nossa, que noite
passei, Valdo, parece que dormi uma gestação, como se eu estivesse ficado
parada por nove meses. Você botou feitiço naquela canjica porque me vi
completamente entregue ao sono e sonho. Estava num cansaço, esses últimos anos
têm sido estressantes para quem tem a consciência no lugar, viu, ainda bem
fiquei descansada por aqui. Tenho de dar jeito no colchão lá de casa que está
me dando dores nos quartos. ― Dodô confessou a Osvaldo entrando na cozinha, ele
preparava o café.
― Tive um sonho, vou te contar na hora do café. Parecia tão real.
‘Os olhos se fixaram um
no outro. Eles se identificaram em tantas coisas, na rotina da vida, nos
gostos, nos dizeres, nos prazeres simples e se envolveram naquele encontro como
se fossem há muito conhecidos. E tinham sorte. Os dois eram livres para se deixarem
levar. Começaram a se apaixonar. Não conseguiam ficar distantes, a pele os
aproximava na quentura dos desejos e o amor crescia a cada dia. Tinham a exuberância
da idade, pareciam adolescentes, eram românticos natos. Isso em meados do século
XX. O envolvimento fazia que o real lá de fora perdesse importância. A fantasia
e imaginação voavam junto aos carinhos que cresciam em intensidade e vinham tão
transparentes, sem censura, sem jogos. Era tão natural e os olhares se perdiam.
De repente os dois se assustaram enquanto se beijavam timidamente. As mães
gritavam de casa para entrar que já era noite. Ele disse baixinho, nunca fui tão
feliz assim antes. Ela viajou nas palavras a lugares infindos. Eles se despediram
com a certeza de que não conseguiriam parar aquele amor.’
― Poxa, Dodô, que pena
bati à porta te chamando pro café e interrompi o romance. Mas que auge, hem,
quem sabe continua a sonhar.
― Acredito nisso, talvez
da próxima vez que eu comer da sua canjica e dormir no aconchego do seu quarto,
quem sabe. Bom, preciso trabalhar, Valdo, a gente conversa depois, tá.
Os dois se despediram e foram cuidar da vida, vida que exige coragem.
terça-feira, 28 de setembro de 2021
o decorrer do tempo (CENA 50)
27/09/2021
― Quer mais
canjica? ― Osvaldo perguntou, e agora era vez de Dodô andar atracada em
pensamentos aéreos, voa com certeza, disse Osvaldo em voz amena a si. A mulher
arisca, atrevida e que gostava de contar as aventuras com o marido andava longe.
Ele então tascou fogo noutro amaldiçoado
cigarro e ambos se alienaram entre cinzas e o acinzentado da fumaça. Acendeu
mais outro assim que a bituca se esvaia. Era bom estar em companhia amiga.
Lembrou-se de Luiza, do rapaz e da avoada mulher ao seu lado, Dodô. Pessoas que
faziam o tempo amenizar-se enquanto lá fora a batalha era a sobrevivência.
Alguns minutos que ganhavam tanta importância, o afago de amizades que não
imaginaria surgirem em sua vida solitária. Cada uma tinha algo especial e
admitia a si que nesse momento de tamanha atormentação para o país, essas
pessoas acrescentavam significado à sua existência. Luiza com sua doçura e ao
mesmo tempo firmeza nas decisões, uma autêntica mulher que se revelava a ele
tão terna. O toque em sua pele lhe trazia lembranças, as quais não soube de que tipo. Dodô, ao contrário, levava-o a suas viagens,
especificando cada detalhe, cada trajeto, cada decisão para obter mais
adrenalina e com ela seguia energizado e com ânsia de conhecer mais e mais
lugares fantásticos e agora estava ali aconchegada com os pezinhos no pilar da
sacada, como uma garota selvagem. Dodô trazia aspectos que libertava enquanto falava
aos cântaros. Era bom escutar. Interrompeu o pensamento e olhou para ela que
ainda ia alhures.
Então veio a figura do rapaz,
outro contador de histórias, mas de jeito jocoso nos stand-ups da vida, mostrava ironia, sarcasmo e arrebatava-o em
risadas, ah, como a juventude traz alegria aos momentos mais inusitados. Ele
fora um jovem com a timidez emperrando sua espontaneidade. O rapaz não, troçava
de qualquer simples evento. Tinha um carinho indefinido por aquele rapaz,
gostava de não dizer o seu nome, rapaz traduzia sua performance.
Estranhou seu ensimesmamento e
riu, isso não era novidade alguma. E quando virou o rosto, Dodô o observava.
― Valdo, você estava longe e
sorridente ou é impressão minha?
― Dodô, gostaria de te perguntar
a mesma coisa, porque fiquei um tempo te olhando e você navegava.
Os dois riram.
― Tenho de caçar rumo, trabalho
amanhã.
― Pra que pressa, Dodô, tem
alguém te esperando?
― Até gostaria, às vezes
sinto falta de companhia.
― Dorme aqui, tá tarde. O quarto
está arrumadinho e é só pegar toalha no armário. Vai, deixa de cerimônia, não é
trabalho nenhum. Daqui você vai para o trabalho e não precisa sair e enfrentar
a pandemia. O quarto e o apartamento em si são acolhedores, você é bem-vinda.
― Ah, Valdo, convite tentador,
bom que a gente pode continuar com um pouco mais de prosa nesse ambiente zen de
sua sacada, que delícia. Vou até pegar mais canjica depois.
Osvaldo quase deixou escapulir
que Luiza quando dormira por lá considerou isso também, não, não sei se Luiza
comentou com Dodô, pensou.
Ambos continuaram em suas
epopeias. Viagem ad interim.
quinta-feira, 12 de agosto de 2021
falar e silenciar (CENA 49)
12/08/2021
O
aflorar de questionamentos, que anteriormente na correria do dia a dia, na
ansiedade e exigência da vida, não tinha tempo requerido para reflexão, agora, presos
em casa ou na necessidade de estar às ruas com todas as prevenções devido as variantes
que se multiplicam, anda em auge. O humano sujeitado a se ler e a se revelar em busca
de adaptação. A pandemia exacerbou angústias. Pessoas exauridas com o isolamento
imposto para sobrevivência. Escolhas se estreitando.
Os
dois amigos sentindo na pele tanta mudança e cada qual sentado em um canto,
tanto por dizer ou silenciar. Dodô olhar atento para Osvaldo aguardando resposta.
Era como se ele estivesse voltado completamente para dentro de si e esquecido
donde estava, por onde caminhava, ondeado por redemoinhos.
―
Osvaldo, aonde você está? O que diria para meu amigo escritor?
―
Hã! Oi! O quê? ― Osvaldo voltou o rosto em direção de Dodô. ― Bem... eu poderia
dar quatro respostas e existiriam outras mais. Vamos lá!
Em
se tratando de literatura, todas as possibilidades estão em aberto, a depender
de qual ponto trafega o escritor e suas intenções, se romântico, se realista,
ou surrealista, até nonsense caberia entre aspas.
De
outro lado, a idade não deveria ser argumento para aceitação do cômodo.
Enquanto houver vida, correr risco em busca do novo deveria ser a tônica. Um
novo amor, uma nova paixão, deixar o outro seguir seu destino a novas emoções,
até mesmo novo compromisso sem a seriedade de antes pode ser um ponto de
exclamação, ou até nenhum relacionamento, por que não!
Dado
minha experiência com esposa em tratamento de saúde, sexo deixara de complementar
o amor nos últimos tempos do casamento. O corpo cansado não está à procura de orgasmo.
Nesse aspecto apelo ao prático. É possível viver sem sexo, mas sem o afeto de
um abraço, do toque que abarca tantas emoções, vejo com reticências.
E
ainda, considerando o que seu amigo acha possível, um casal sem afinidade física
mas com amor espiritual, penso que nem um amigo meu quando lhe pegam a dar
conselho e dizer ‘se eu fosse você...’ ele geralmente responde: ‘se você fosse eu,
agiria da mesma forma, porque você seria eu’. Afinal, cada casal e cada um é
único e decide o que quer da vida. E, às vezes, decide até não escolher e
deixar o tempo correr.
Quanto
às conjecturas sobre o gosto das mulheres e dos homens não deixo interrogação. Tanto
mulher quanto homem quer é ser feliz. Quer amar e ser amado. Ambos buscam a
felicidade. Não estão em lados opostos... claro, insisto, falo em nome daquele compromissado
na relação a dois. De forma que existe o hiato ― a questão do diálogo ― as
pessoas têm de falar o que sentem de verdade. Nem sempre o silenciar é provedor
de sabedoria. Às vezes é síntese de fuga. A análise de monólogo interior abarca
apenas o uno. Ponto final. Dessa vez falei demais, ― Osvaldo solta boa risada.
―
Se eu não escrevesse os itens na minha agenda, não conseguiria relembrá-los para
o meu amigo. Muito bom. O que a experiência acrescenta em nós, hein, detalhes
que eu mesma não tinha antenado. Apesar de entender que acontece do jogo
amoroso, às vezes, ser competitivo e de um não dar chance ao outro, querer ser
poder. Aí, a entrelinha da relação é o que muito se vê.
Dodô
e Osvaldo continuaram a lambiscar canjica e cada um com a vista para a natureza
verde. Depois Osvaldo pigarreou, e ainda assim, lascou fogo no cigarro lamentando
o vício. Dodô pensativa se era hora de riscar estrada.
quarta-feira, 30 de junho de 2021
é isto, mas não deveria ser (CENA 48)
30/06/2021
Estava
empolgado. Disse a si mesmo: ‘você vive de empolgação. Às vezes na acomodação.’
Olhou para o livro que aguardava leitura. Interrompeu o vídeo que começara
assistir para pegar o almoço, quatro da tarde e sem comer ainda. Riu de seus
comportamentos. A instabilidade agora tão nítida e perceptível. Apenas vivia.
Vive. As causas e consequências desse processo são os relatos de vida.
Osvaldo ouviu a campainha e saiu
do aconchego da varanda após o almoço apagando a bituca de cigarro.
― Ei, Dodô! Veio cedo com as compras. Daqui a
pouco terá descanso, daqui umas duas semanas estarei imunizado com a segunda
dose e não incomodarei mais a você, Luiza e Ritinha. ― Osvaldo ia falando
enquanto Dodô espalhava a compra perto da porta e limpava os objetos. ― Seu
chinelo está aqui. Deixa que termino, entra e vai lavar as mãos. Fiz canjica pra
nós.
Após tanto tempo de pandemia eles
já não usavam máscara quando estavam à distância segura dentro de casa com
janelas abertas.
― Valdo, eu tinha estranhado você
não fazer pedido de ingredientes pra festa junina individual como fez ano
passado. Mas o seu São João está atrasado, hoje são 30 dias de junho.
― Sabe, Dodô, os dias, semanas,
meses e pelo jeito chegará anos e essa epidemia não tem fim. Afora tantas
dores, quase 520 mil mortes, ouvi que são na realidade mais de 700 mil mortes se
tudo fosse notificado, energias instáveis por todo esse processo que a gente
vem vivenciando, assomadas às corrupções do e no governo, agora envolvendo até compras
de vacinas conforme a CPI, às exigências do povo nas ruas vêm crescendo a cada
encontro, tantas tragédias, desrespeito aos indígenas, matanças no Rio de
Janeiro, no Amazonas, em tantos outros lugares, a venda por preço de banana das
nossas últimas riquezas, esse tempo que vivemos é a barbárie. É traição e
deslealdade aos cidadãos. O executivo, o legislativo, o judiciário, a cada dia
nos deixam mais deprimidos pela falta de respostas dignas de instituições que
deveriam honrar a vida dos brasileiros. ― Osvaldo ficou com respiração difícil
e fez pausa. Em seguida continuou:
― Não aguento mais. Nem tenho
astral pra festa junina, mas fiz a canjica. Espera aí, vou esquentar porque o
frio está congelante, nove graus, coitada de você que ainda teve de vir aqui.
― Que isso, Valdo, tá me estranhando. Amigos atravessam oceanos, mares, lugares e apesar dos pesares ainda somos privilegiados, estamos vivos, e nossas irmãs e irmãos que se foram, hein? Quanta loucura vivencio todo santo dia. Fake news anda às turras por aí, inda mais com a queda do “minto muito” ― Dodô e Osvaldo relaxaram com risadas.
―
Canjica saindo fumegando.
― Huuumm! Tem que me contar o segredo.
A canjica está deliciosa.
― Não conta pra ninguém, coloco
pitada de noz moscada.
― Uau, está saborosíssima!
Enquanto comiam à distância prudente, interrompiam para conversa fiada.
―
Valdo, lembra aquele amigo meu que anda escrevendo uma novela? Acho que
comentei com você. Ele me perguntou esses dias o que eu achava do casamento com
muitos anos de convivência. O personagem que ele descreve está na nossa faixa
de idade.
― Dodô, você está sendo irônica! É
bem mais jovem que eu. Relembro uma conversa nossa ano passado, quando veio
aqui, talvez julho ou agosto ... e em pensamento veio-lhe a cena ...
― Gostou do poema do anjo
pornográfico que te enviei, Dodô? ― Osvaldo inquiriu enquanto higienizava as
mercadorias na cozinha. ― Credo em cruz, com essa pandemia tô vendo quanta
sujeira vem, olha só! ― Dodô se aproximou da porta e ele mostrou o papel toalha
úmido de álcool, imundo.
― Anjo pornográfico? Quem? Dalton
Trevisan? Nelson Rodrigues? Você me enviou algo deles? Não lembro.
Osvaldo então declamou:
“...
exércitos correndo através
de ruas de sangue
brandindo garrafas de vinho
baionetando e fodendo
virgens.
...
há tamanha solidão no mundo
que você pode vê-la no movimento lento dos
braços de um relógio.
pessoas tão cansadas
mutiladas
tanto pelo amor quanto pelo desamor.
as pessoas simplesmente não são boas umas
com as outras
cara a cara.
os ricos não são bons para os ricos
os pobres não são bons para os pobres.
estamos com medo.
...
ou do terror de uma pessoa
sofrendo sozinha
num lugar qualquer
intocada
incomunicável
regando uma planta.
As pessoas não são boas umas com as outras.
― O poema chama-se “o estouro”. Bukowski repete
esta última frase três vezes. Dá pra sentir a dor, essa ênfase martela na nossa
mente, ― e continua a declamação após as três frases iguais:
suponho
que nunca serão.
não
peço que sejam.
mas
às vezes eu penso sobre
isso.
as
contas dos rosários balançarão
as
nuvens nublarão
e o
assassino degolará a criança
como
se desse uma mordida numa casquinha de sorvete.
...
tem
que haver um caminho.
com
certeza deve haver um caminho sobre o qual ainda
não
pensamos.
...
quem
colocou este cérebro em mim?
ele
chora
ele
demanda
ele
diz que há uma chance.
...”.
― Ah! Não sabia que o poeta estadunidense, Charles Bukowski, era chamado anjo pornográfico. Adorei o poema, mas discordo dele, não me sinto sozinha. Já te contei que sempre gostei de morar sozinha e já cinquentona casei, vivi com meu marido por alguns anos um casamento interessante e aventureiro, devido problemas cardíacos ele se foi. Novamente me vi sozinha.
― Não é o seu caso, certamente.
Mas existe muitas pessoas sozinhas, solitárias, sem ninguém. ‘Viver sozinha’ é
diferente de ‘morar sozinha’.
― Como uma pessoa com medo iria
se preocupar em regar uma planta?
― Talvez seja a forma dela se
livrar do medo.
Dodô ficou pensativa. Osvaldo finalizou.
― Os poetas usam a palavra
carregada de significação, capaz de provocar, modificar, iluminar a realidade
do mundo. ― Em seguida mudou de assunto:
― Nós temos o demônio
pornográfico, né? ‘O demônio anda desgovernado por nossa boa terra, triste realidade, mas o que
esperar de um presidente que falou 34 (trinta e quatro) palavrões numa reunião
ministerial. E agrediu a imprensa mais de 200 (duzentas) vezes por não aceitar
qualquer tipo de crítica.’ Você viu a última, quando perguntado sobre o
dinheiro recebido pela esposa? Uma pergunta que esperamos resposta. ‘A palavra
aqui revela pobreza de vocabulário, cultura rasteira e falta de argumento. É
isto, mas não deveria ser.’
― Valdo, a coisa está feia. Como
o caso da garotinha de dez anos, que decepção, instituições que deveriam
protegê-la, olha o que fizeram. Quer dizer, o ministério dos direitos humanos,
o hospital público, uma tal professora e até um tal padre usaram palavras sobre a menininha como
se comessem casquinha de sorvete. Mulher, criança, não são mercadorias. O que
esse governo pensa? Nós estamos cansadas de ser usadas como bode expiatório
para a fraqueza de homens e até mulheres desse tipo.
― Quantas crianças, meninas e
meninos violentados todos os dias neste país. Que família tradicional é essa
que permite tais tratamentos e não luta por políticas públicas de proteção a
elas? ― Osvaldo complementou.
― É isto, como você disse, mas
não deveria ser.
Os dois amigos desconsolados com
a miséria do mundo, da qual os poetas bem conhecem, emudeceram-se, e pensativos
ficaram com palavras engasgadas. Osvaldo com espírito inconstante e paz
inquieta deu voz:
― Encontraremos o caminho e a
hora não tarda.
Osvaldo se envolveu na névoa da lembrança
e se assustou com Dodô perguntando:
― O que diria para o meu amigo
escritor, sobre convivência no casamento? Ele acha possível o casal não ter
mais afinidades físicas, e ainda existir o amor espiritual.
― Pensei em mim também. ― Osvaldo
respondeu. ― Por que as mulheres se cansam de fazer sexo e os homens não?
― Acho que as mulheres assumem os gostos dos homens e topam fazer sexo quando eles querem e como gostam. Mas não vejo a contrapartida do lado deles ― que são a atenção carinhosa, a expressão do afeto. Parecem que só pensam “naquilo”. Esquecem que para ter o que querem, devem fazer um esforço e dar à mulher o que ela sente falta, que é carinho, atenção, afeto. A gente se esforça para agradar o companheiro, por que ele não pode se esforçar para agradar a gente? Por que o homem não enxerga que tem parcela importante para a igualdade de desejos? Assim ambos ficariam satisfeitos. O homem no estilo de pouco diálogo, dificuldade de se abrir, de expressar sensibilidade, fica preso ao seu único interesse egoísta, sexo como instinto apenas. Quais são suas conjecturas?