01/09/2020
― Dodô, mas me diga, como está a cidade? ― Osvaldo continuou na cozinha guardando os mantimentos e Dodô na porta, a uma distância, com máscara.
― Meu Bom Jesus da Lapa
que o diga, está igual minha cidade em tempo de procissão. Lotada. Como se não
houvesse nada. Pessoas andam pelas ruas, compram, bebem, conversam, algumas
mascaradas outras não. Uma loucura, por isso o corona cresce assustadoramente. Nós,
as trabalhadoras e trabalhadores, trabalhamos. Valdo, está como se fosse
dezembro, lembra o dia da nossa festa de confraternização? Pois é, tem tanta
gente quanto aquele dia perambulando por lá.
― Meu Jesus Cristinho,
esse povo não emenda. Quer dizer que o negacionismo anda à solta. Negam as mortes,
que caminham para os duzentos mil, negam o vírus, negam a ciência, negam a
evolução humana, meu Deus!
― Vergonha e náusea,
bem assim. ― Emendou Dodô.
― Mas parece que o
negacionismo anda perdendo, pois o governador e a vice estão sofrendo
impeachment, ambos do antigo partido do presidente. Estão administrando tão mal
o estado que as forças do poder já estão a mostrar os dentes. Olha que este
estado do Centro Sul do país, com mais de setenta por cento de votos dados ao
governo atual, mostra que estão acordando e vendo que não estamos em berço
esplêndido não. Depois falam mal da sua região, de não saberem votar.
― Pois me orgulho do
nosso Nordeste, somos progressistas, votamos melhor que os ditos “estudados”.
Meu povo nordestino aprendeu ser resiliente e sobreviver do jeito possível.
Dizem aí que melhorou a pontuação do governo, duvi-d-ó-dó. Essas pesquisas são feitas por nossos lados
mesmo e desconhecem aquela região e sua particularidade, sempre vista como a
parcela pobre usada para enricar o sudeste e sul do Brasil.
― Como as pessoas são
enganadas, hein, é tanta malandragem nessas estatísticas que já ninguém
acredita em pesquisas desse tipo. Dodô, mudando de assunto, você relembrou da
nossa festa de fim do ano passado e aclarou minha mente, o momento em que me
aproximei de vocês, você e as meninas conversavam baixinho, como se estivessem
segredando algo. Eu perguntei se havia algum problema, mas vocês desdisseram e
deram umas risadinhas. Eu ia aprofundar e insistir, mas um aposentado me puxou
para o amigo oculto e não deu. O que aconteceu?
― Ai, Valdo,
aconteceram tantas coisas naquele dia tão divertido. Mas recordo de um incômodo
durante a festa, um dos seus amigos da esquina estava “dando” em cima de mim e
me tocando de forma atrevida, sem meu consentimento. Ah, Valdo, esses homens
ainda pensam que têm posse do corpo da mulher, ficam desejosos dos nossos
corpos como se não vissem cabeça coração mente. Hoje tem ainda tanta semelhança
com o século XIX, credo, homens cobiçosos, deselegantes, vazios, possessos
quando veem mulher, como se vê descrito no livro do Tolstói, Ressurreição. Você já leu?
― Sinto tanto que isso
tenha acontecido, Dodô. Às vezes as pessoas extrapolam e atravessam fronteiras
desconcertantes. Atualmente temos visto muito disso na sociedade, uma regressão
que nos coloca em alerta. Não podemos permitir que isso retorne. Um atraso que
não faz nenhum bem.
― O que passou passou,
vamos em frente e atentos.
Dodô desviou o passo e pegou sacola e bolsa, despedindo-se de Osvaldo enviando um beijo à distância.
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