quarta-feira, 2 de setembro de 2020

semelhanças ainda hoje (CENA 25)

 

01/09/2020

            ― Dodô, mas me diga, como está a cidade? ― Osvaldo continuou na cozinha guardando os mantimentos e Dodô na porta, a uma distância, com máscara.

― Meu Bom Jesus da Lapa que o diga, está igual minha cidade em tempo de procissão. Lotada. Como se não houvesse nada. Pessoas andam pelas ruas, compram, bebem, conversam, algumas mascaradas outras não. Uma loucura, por isso o corona cresce assustadoramente. Nós, as trabalhadoras e trabalhadores, trabalhamos. Valdo, está como se fosse dezembro, lembra o dia da nossa festa de confraternização? Pois é, tem tanta gente quanto aquele dia perambulando por lá.

― Meu Jesus Cristinho, esse povo não emenda. Quer dizer que o negacionismo anda à solta. Negam as mortes, que caminham para os duzentos mil, negam o vírus, negam a ciência, negam a evolução humana, meu Deus!

― Vergonha e náusea, bem assim. ― Emendou Dodô.

― Mas parece que o negacionismo anda perdendo, pois o governador e a vice estão sofrendo impeachment, ambos do antigo partido do presidente. Estão administrando tão mal o estado que as forças do poder já estão a mostrar os dentes. Olha que este estado do Centro Sul do país, com mais de setenta por cento de votos dados ao governo atual, mostra que estão acordando e vendo que não estamos em berço esplêndido não. Depois falam mal da sua região, de não saberem votar.

― Pois me orgulho do nosso Nordeste, somos progressistas, votamos melhor que os ditos “estudados”. Meu povo nordestino aprendeu ser resiliente e sobreviver do jeito possível. Dizem aí que melhorou a pontuação do governo, duvi-d-ó-dó.  Essas pesquisas são feitas por nossos lados mesmo e desconhecem aquela região e sua particularidade, sempre vista como a parcela pobre usada para enricar o sudeste e sul do Brasil.

― Como as pessoas são enganadas, hein, é tanta malandragem nessas estatísticas que já ninguém acredita em pesquisas desse tipo. Dodô, mudando de assunto, você relembrou da nossa festa de fim do ano passado e aclarou minha mente, o momento em que me aproximei de vocês, você e as meninas conversavam baixinho, como se estivessem segredando algo. Eu perguntei se havia algum problema, mas vocês desdisseram e deram umas risadinhas. Eu ia aprofundar e insistir, mas um aposentado me puxou para o amigo oculto e não deu. O que aconteceu?

― Ai, Valdo, aconteceram tantas coisas naquele dia tão divertido. Mas recordo de um incômodo durante a festa, um dos seus amigos da esquina estava “dando” em cima de mim e me tocando de forma atrevida, sem meu consentimento. Ah, Valdo, esses homens ainda pensam que têm posse do corpo da mulher, ficam desejosos dos nossos corpos como se não vissem cabeça coração mente. Hoje tem ainda tanta semelhança com o século XIX, credo, homens cobiçosos, deselegantes, vazios, possessos quando veem mulher, como se vê descrito no livro do Tolstói, Ressurreição. Você já leu?

― Sinto tanto que isso tenha acontecido, Dodô. Às vezes as pessoas extrapolam e atravessam fronteiras desconcertantes. Atualmente temos visto muito disso na sociedade, uma regressão que nos coloca em alerta. Não podemos permitir que isso retorne. Um atraso que não faz nenhum bem.

― O que passou passou, vamos em frente e atentos.

Dodô desviou o passo e pegou sacola e bolsa, despedindo-se de Osvaldo enviando um beijo à distância.

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