quarta-feira, 23 de setembro de 2020

tempo tempo tempo (CENA 28)

 

22/09/2020

            Osvaldo terminou de escrever para cada um dos amigos da adolescência. Maria, Mafalda, Aluísio e Leila. Como gostaria de fazer o mesmo com Taquinho, saber que ainda estaria aqui com chances de eu poder abraçar, sentir o calor irmão, o gesto tão amoroso junto à turma, sua expressão de interesse e ao mesmo tempo aquela falta de paciência que às vezes explodia. Meu irmão, quantas lembranças.

Sentado na varanda, fumando seu cigarrinho, Osvaldo a cada esfumaçar à frente, viajava.

― Pessoal, deixa o Valdo entrar, está quase no meio do jogo e ele no cantinho, doido pra bater bola. Vai, dá uma chance pra ele. ― Eustáquio falou enquanto sapecava o drible, afinal não conseguia ficar calado enquanto jogava. Moleque de dez anos, via o irmão mais velho esparramado junto com outros aguardando a vez, sentados num barranco acima do campinho de várzea, de onde tinham visão privilegiada da partida de futebol.

― Daqui a pouco a gente chama ele, tá quase na hora do intervalo. Pega a bola aí, Chavico, cuidado com o ataque, num fica de bobeira não, ― o amigo falou apressado para um dos jogadores enquanto movimentava o corpo, e depois voltou o rosto ― Taquinho, ele é ruim de bola, você sabe, com aquele jeito molengão acaba atrapalhando as jogadas. Deixa ele de bobeira mais um “pouquin”. ― Mas Eustáquio sempre saía na defesa do irmão. Conhecia as limitações, mas não se acomodava e o colocava para jambrar. A turma caía em cima e resmungava durante a partida. ― Prestenção, Jamanta, tão te marcando aí, põe força nessa bola, cara. ― disse o menino que competia com Eustáquio na liderança do time.

Osvaldo entretido com jogadas, balançava o corpo encostando nos meninos ao redor, e no meio deles, Elisabete, a única menina a não dar moleza para os marmanjos do time e gostava de jogar futebol. Descalça, magrela de cabelinho liso feito tigela de cabeça para baixo na cabeça, espevitada vendo os meninos driblando e reclamando aqueles pernas de pau durante a jogada. Enquanto isso, Osvaldo via o irmão correr em campo, sacudindo o corpo como se rebolasse, ou mancasse, com uma perna pouco mais curta e fina que outra por causa da poliomielite, não tinha a menor dificuldade nas brincadeiras e todos acostumados ao jeitão atrevido do menino que até mesmo o protegia, apesar dele ser quatro anos mais velho.

Lembrava de Taquinho nas conversas com a turma Todos por um. A gente se sentava em círculo e naquele ambiente conversava o que desse na telha, como dizíamos, tanta gíria que hoje em dia nem se usa mais, Osvaldo deu uma risadinha. Era muito legal esse tempo. Contestação, rebeldia, atrevimento, cada dia uma novidade, uma pergunta sem resposta se ampliando ao rol imaginário, formando tantos questionamentos ao longo da existência, como agora fico eu, me fazendo tantas questões que ainda não consigo responder. Quanto mais vivo menos tenho resposta, que negócio maluco é viver. Via o olhar caminhando discretamente para Leila, a primeira que fez seu coração balançar acelerado, os comichões no corpo e ruborizava com timidez. Era segredo, não se atrevia mostrar àquela moça quanto ela fazia os encontros se tornarem perfeitos. Taquinho não desconfiava, ele vivia o instante presente com tamanha intensidade, de dar inveja, ah! Gostaria de ter esse jeito mais desmedido, sem se preocupar com o que os outros pensam a respeito de si, sua autenticidade era a marca.

Osvaldo se aproximou cada vez mais de Leila, uma moça à frente de seu tempo, pálida, cabelo misturado de mel e acaju cacheados às pontas, totalmente solta, leve, disponível para escutar a sonoridade de sua voz de menino que se transformava, ela dizia, como gosto de ouvir você contar as aventuras dos livros que lê e eu contar o que achei dos personagens românticos de Machado de Assis, José de Alencar e outros, tão piegas, e rindo, também os romances de Jane Austen que mesmo heroína, se atrevendo, ainda é demasiadamente conservadora nos toques, nos desejos, mulheres fazendo o pouco permitido para tempos de então, sem qualquer protagonismo feminino, tendo inclusive dificuldade de aceitação dos pares da escrita, chegando a escrever com nome masculino. O patriarcado se impondo como algo natural e que sempre existisse quando na verdade foi construído por uma sociedade dominante e oligárquica. Leila, não. Leila surpreendia, nada tinha de moça burguesa, contestava os pais, colegas, amigas, saía com amigos homens e as outras meninas presas em casa.

Osvaldo imaginou que estando o mais perto possível haveria chance dela perceber seu amor, tão doce e pronto a compartilhar. Mas Leila tinha aquele corpo modelado, quanto a ele, cansou de agressões intencionais desde criancinha por causa do peso. Chamado bolota, gorducho, rechonchudo, bochechudo, fofucho, rei momo e muitos outros nomes pejorativos que dificultaram sua expressão no mundo. Desde cedo preferia leituras e solidão, amenizando recalques. Leila foi um lado bom que surgiu em pleno auge adolescente, onde o amor se atrevia a beirar margem e imaginar que o outro aceitaria seus defeitos, aliás, por que veria apenas defeitos, as qualidades entendia que as tinha sim, mas ali bloqueadas, sem possibilidade de expressão. Leila exigia que ele se soltasse tanto quanto ela considerava satisfatório e nessa lida entre duas pessoas passou a se imaginar amado também e no silêncio do outro se percebia aceito e comemorava internamente. Queria convidar Leila para sair, ir ao cinema, tomar sorvete, festas, a coragem faltava, o tempo corria enlouquecido, mas ele sem encontrar palavra que surgisse no momento ideal.

Até que resolveu aquele dia nada tiraria sua coragem, nem mesmo iria fantasiar situações, decidido se abrir completamente àquela menina-mulher tão especial como ele a via. Não tinham marcado encontro. Queria a surpresa e comemorou antecipadamente o sim que ela daria às suas evocações. Arrumou-se naquela sexta feira de fim de tarde, despediu-se dos pais e rumou a casa de Leila, sim, tocaria a campainha e ela sorridente estaria pronta. Distante alguns passos, viu Leila beijando um rapaz.

Quedou-se estarrecido junto ao muro e procurou não ser visto. Em seguida os dois saíram de mãos dadas pela rua.

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