22/09/2020
Osvaldo
terminou de escrever para cada um dos amigos da adolescência. Maria, Mafalda,
Aluísio e Leila. Como gostaria de fazer o mesmo com Taquinho, saber que ainda
estaria aqui com chances de eu poder abraçar, sentir o calor irmão, o gesto tão
amoroso junto à turma, sua expressão de interesse e ao mesmo tempo aquela falta
de paciência que às vezes explodia. Meu irmão, quantas lembranças.
Sentado na varanda,
fumando seu cigarrinho, Osvaldo a cada esfumaçar à frente, viajava.
― Pessoal, deixa o
Valdo entrar, está quase no meio do jogo e ele no cantinho, doido pra bater
bola. Vai, dá uma chance pra ele. ― Eustáquio falou enquanto sapecava o drible,
afinal não conseguia ficar calado enquanto jogava. Moleque de dez anos, via o
irmão mais velho esparramado junto com outros aguardando a vez, sentados num
barranco acima do campinho de várzea, de onde tinham visão privilegiada da
partida de futebol.
― Daqui a pouco a gente
chama ele, tá quase na hora do intervalo. Pega a bola aí, Chavico, cuidado com
o ataque, num fica de bobeira não, ― o amigo falou apressado para um dos
jogadores enquanto movimentava o corpo, e depois voltou o rosto ― Taquinho, ele
é ruim de bola, você sabe, com aquele jeito molengão acaba atrapalhando as
jogadas. Deixa ele de bobeira mais um “pouquin”.
― Mas Eustáquio sempre saía na defesa do irmão. Conhecia as limitações, mas não
se acomodava e o colocava para jambrar. A turma caía em cima e resmungava
durante a partida. ― Prestenção, Jamanta, tão te marcando aí, põe força nessa
bola, cara. ― disse o menino que competia com Eustáquio na liderança do time.
Osvaldo entretido com
jogadas, balançava o corpo encostando nos meninos ao redor, e no meio deles, Elisabete,
a única menina a não dar moleza para os marmanjos do time e gostava de jogar
futebol. Descalça, magrela de cabelinho liso feito tigela de cabeça para baixo
na cabeça, espevitada vendo os meninos driblando e reclamando aqueles pernas de
pau durante a jogada. Enquanto isso, Osvaldo via o irmão correr em campo,
sacudindo o corpo como se rebolasse, ou mancasse, com uma perna pouco mais
curta e fina que outra por causa da poliomielite, não tinha a menor dificuldade
nas brincadeiras e todos acostumados ao jeitão atrevido do menino que até mesmo
o protegia, apesar dele ser quatro anos mais velho.
Lembrava de Taquinho
nas conversas com a turma Todos por um.
A gente se sentava em círculo e naquele ambiente conversava o que desse na telha, como dizíamos, tanta gíria que
hoje em dia nem se usa mais, Osvaldo deu uma risadinha. Era muito legal esse
tempo. Contestação, rebeldia, atrevimento, cada dia uma novidade, uma pergunta
sem resposta se ampliando ao rol imaginário, formando tantos questionamentos ao
longo da existência, como agora fico eu, me fazendo tantas questões que ainda
não consigo responder. Quanto mais vivo menos tenho resposta, que negócio
maluco é viver. Via o olhar caminhando discretamente para Leila, a primeira que
fez seu coração balançar acelerado, os comichões no corpo e ruborizava com
timidez. Era segredo, não se atrevia mostrar àquela moça quanto ela fazia os
encontros se tornarem perfeitos. Taquinho não desconfiava, ele vivia o instante
presente com tamanha intensidade, de dar inveja, ah! Gostaria de ter esse jeito
mais desmedido, sem se preocupar com o que os outros pensam a respeito de si,
sua autenticidade era a marca.
Osvaldo se aproximou
cada vez mais de Leila, uma moça à frente de seu tempo, pálida, cabelo misturado
de mel e acaju cacheados às pontas, totalmente solta, leve, disponível para
escutar a sonoridade de sua voz de menino que se transformava, ela dizia, como
gosto de ouvir você contar as aventuras dos livros que lê e eu contar o que
achei dos personagens românticos de Machado de Assis, José de Alencar e outros, tão piegas, e rindo,
também os romances de Jane Austen que mesmo heroína, se atrevendo, ainda é
demasiadamente conservadora nos toques, nos desejos, mulheres fazendo o pouco
permitido para tempos de então, sem qualquer protagonismo feminino, tendo
inclusive dificuldade de aceitação dos pares da escrita, chegando a escrever
com nome masculino. O patriarcado se impondo como algo natural e que sempre
existisse quando na verdade foi construído por uma sociedade dominante e
oligárquica. Leila, não. Leila surpreendia, nada tinha de moça burguesa,
contestava os pais, colegas, amigas, saía com amigos homens e as outras meninas
presas em casa.
Osvaldo imaginou que
estando o mais perto possível haveria chance dela perceber seu amor, tão doce e
pronto a compartilhar. Mas Leila tinha aquele corpo modelado, quanto a ele,
cansou de agressões intencionais desde criancinha por causa do peso. Chamado
bolota, gorducho, rechonchudo, bochechudo, fofucho, rei momo e muitos outros
nomes pejorativos que dificultaram sua expressão no mundo. Desde cedo preferia
leituras e solidão, amenizando recalques. Leila foi um lado bom que surgiu em
pleno auge adolescente, onde o amor se atrevia a beirar margem e imaginar que o
outro aceitaria seus defeitos, aliás, por que veria apenas defeitos, as
qualidades entendia que as tinha sim, mas ali bloqueadas, sem possibilidade de
expressão. Leila exigia que ele se soltasse tanto quanto ela considerava
satisfatório e nessa lida entre duas pessoas passou a se imaginar amado também
e no silêncio do outro se percebia aceito e comemorava internamente. Queria
convidar Leila para sair, ir ao cinema, tomar sorvete, festas, a coragem
faltava, o tempo corria enlouquecido, mas ele sem encontrar palavra que
surgisse no momento ideal.
Até que resolveu aquele dia nada tiraria sua coragem, nem mesmo iria fantasiar situações, decidido se abrir completamente àquela menina-mulher tão especial como ele a via. Não tinham marcado encontro. Queria a surpresa e comemorou antecipadamente o sim que ela daria às suas evocações. Arrumou-se naquela sexta feira de fim de tarde, despediu-se dos pais e rumou a casa de Leila, sim, tocaria a campainha e ela sorridente estaria pronta. Distante alguns passos, viu Leila beijando um rapaz.
Quedou-se estarrecido junto ao muro e procurou não ser visto. Em seguida os dois saíram de mãos dadas pela rua.
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